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Crítica ao livro «A Memória e o Fogo»
Le Monde Diplomatique
Ricardo Noronha


A Memória e o Fogo

Jorge Valadas


Letra Livre, Lisboa, 2008, 158 pp., € 12.


Publicado originalmente em França, em 2006, A Memória e o Fogo foi traduzido para português por Júlio Henriques (que escreve também o prefácio) e Ana Paixão. Editada pela Livraria Letra Livre, beneficia de um esplêndido trabalho gráfico de Pedro Serpa (destaque para a capa, onde um casal de mendigos invisuais pede esmola na Avenida da Liberdade). Jorge Valadas – português exilado em França desde os anos 60, autor de várias obras de reflexão política de cariz libertário, participante nos Cadernos de Circunstância (1969-71) e no jornal Combate (1974-78), assinando frequentemente com o pseudónimo de Charles Reeve – reúne aqui em dezanove curtos ensaios as suas observações sobre os últimos anos de evolução da sociedade portuguesa, caracterizada como «o cenário invertido da eurolândia».


Trata-se de oferecer ao leitor uma imagem de Portugal em permanente oscilação entre o presente e o passado, detectando estranhas continuidades ao nível das mentalidades e atitudes, a recorrência de certos temas e o eterno retorno de velhos problemas. Tudo isto demarcando-se claramente dos exercícios de reflexão sobre o destino nacional ou a crise de identidade dos portugueses, também eles aqui abordados, com destaque para os de Eduardo Lourenço e José Gil. Recusando a imagem de uma colectividade nacional socialmente homogénea e atravessada pelo consenso, colectivamente aprisionada num destino comum e acorrentada à inevitabilidade da miséria, contrapõe-lhe as clivagens e antagonismos que percorrem «Portugal». Os fogos de verão, o arrastão que nunca existiu, o diploma de José Sócrates, o crescimento do desemprego e da pobreza, da criminalidade e da xenofobia, as ilusões de grandeza e o cinismo decadentista – de tudo isto Jorge Valadas retira ilações e significados, para oferecer ao leitor os contornos de um país onde a relativa passividade das classes dominadas permite aos poderosos os mais despudorados actos de mesquinhez, corrupção e pilhagem.


Ancorado numa perspectiva crítica simultaneamente familiarizada e distanciada, Valadas aborda questões como as migrações (tanto as dos imigrantes que chegam como as dos emigrantes que partem), a destruição do território e as dinâmicas de «modernização» da formação social portuguesa, com uma notável dose de humor e sarcasmo, e ainda os discursos, representações e atitudes de elementos destacados da burguesia portuguesa e respectivos ideólogos. O «racismo social» omnipresente na cultura mediática e que permanentemente desqualifica e menoriza as classes populares, o conservadorismo beato herdado da Inquisição e reactualizado no século XX pela censura, a difusão e banalização da violência entre os mais pobres, a incapacidade do Estado de alinhar os principais indicadores sociais ao nível dos restantes países da União Europeia, a pobreza do jornalismo e a superficialidade da produção cultural, o consumismo endividado da «classe média», a nostalgia do Império e da ordem bafienta do salazarismo – são outros tantos elementos ilustrativos do desencontro entre, por um lado, as estatísticas e o discurso oficial das instituições (para «eurocrata» ver) e, por outro, o país que envelhece e empobrece à margem/ apesar/por causa da modernização neoliberal em curso.


Um olhar lúcido sobre tudo isto nunca seria supérfluo e um livro escrito por um português exilado que acompanha com interesse o que aqui se passa só poderia ser bem-vindo. Mas Jorge Valadas faz bem mais do que isso e – sem retirar qualquer brilho às suas observações sociológicas fragmentárias mas certeiras – avança um conjunto de hipóteses interpretativas cuja pista apresenta mais do que um motivo de interesse. Como que elaborando uma história secreta de Portugal, procurou estabelecer um nexo entre o deserto presente e o abafar da iniciativa popular e proletária que, insubmissa, se fez sentir ciclicamente no passado. As figuras anónimas cuja existência descreve, tal como aquelas outras mais conhecidas cuja imagem resgata à apropriação pela cultura oficial – como Camões ou Antero de Quental –, são os protagonistas dos gestos de recusa, combate, afrontamento e crítica contra o Portugal dos pequeninos que actualmente se nos apresenta como uma fatalidade histórica.


Este livro foi escrito contra essa fatalidade e Jorge Valadas procurou descortinar, na complexidade dos acontecimentos históricos, as linhas com que se cose o presente, passando em revista – breve mas atentamente – as causas da decadência dos povos peninsulares, os impasses da Revolução Liberal, as convulsões da I República, a dura luta nas condições da ditadura e a explosão social do período de 1974-75. No «cenário invertido da eurolândia», não se limitou à denúncia da miséria ou à descrição exaustiva do deserto. Identificou caminhos e rotas, encontrou cúmplices e marginais, estabeleceu afinidades e divergências, avançou ideias preciosas com as quais desafiar o actual estado de coisas. Nesse sentido, a memória que nos transmite encontra-se carregada de futuro.





«A revolução poética será sempre uma insurreição permanente mesmo no seio de um regime verdadeiramente revolucionário.»
António Ramos Rosa
Diga-nos um livro nunca traduzido em Portugal que gostaria de ver editado?
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